Se há coisa que pode caracterizar o nosso tempo é o fútil.
Desenvolvemos, nas últimas décadas, uma inusitada capacidade para nos ocuparmos
do fútil.
Quando eu era estudante universitário estava em voga “A Era
do Vazio”, de Lipovetski. Não havia aluno que se prezasse que o não tivesse
lido – ou fingido ler. Andava nas mãos de toda a gente. É assim em todas as
gerações: há sempre livros ou ideias que estão na moda. Do mesmo modo que faz
parte do “percurso” de um universitário determinadas ideias ou correntes que,
depois, se espera que venha a abandonar ou, então, a abraçar seriamente. Um dos
meus mais notáveis professores, dizia-nos que se durante o tempo na
universidade não fôssemos comunistas pelo menos durante um semestre, não
tínhamos entendido nada do que se vai fazer a uma universidade. Depois,
naturalmente, era suposto que essa “fase” passasse. Claro… a alguns não passou.
O que ele queria dizer, naturalmente, é que faz parte do
percurso de vida o abraçar de ideais, experimentar causas, pôr em dúvida
axiomas… E nenhuma altura na vida é mais propícia do que aquela em que estamos
na universidade. Ele era assim. Um homem de afirmações apodíticas, que nos
apresentava aquelas coisas como se nos falasse de um pedestal conferido pelo
intelecto, dando-nos a impressão – sem nunca o dizer – que ele próprio tinha
experimentado aqueles patamares que se esperava, agora, que nós
experimentássemos. Nenhum de nós se atrevia a fazer a pergunta. Ouvíamos a
excentricidade intelectual de um homem que nos apresentava a universidade como
um tempo de realização e construção da nossa própria intelectualidade – e
humanidade. Em suma, que nos havia de dar as ferramentas para pensarmos pela
nossa própria cabeça. Mas para tanto, é necessário primeiro saber o que pensam
os outros: ler, estudar, investigar, para depois, pelo raciocínio, desmontar
esses ideários, de forma a chegar ao nosso próprio pensamento. Dá trabalho. Mas
estou-lhe grato por essa insistência.
Um dia, um diligente colega apareceu na aula com “A Era”
debaixo do braço. Rapidamente divergiu para o Vazio, e para a necessidade de
ler o livro, mais do que passeá-lo. A ele pouco lhe importava que passeassem
livros. Via, há décadas, estudantes a passeá-los para os professores verem.
Irritava-se com isso. Essas pessoas, nulidades intelectuais no seu entender,
tinham depois, vida fora, uma inacreditável facilidade em vingar em bons
empregos: tinham desenvolvido a ciência de parecer (mesmo não sendo) aplicados,
competentes, meritórios. Desenvolviam-na desde a faculdade, – provavelmente já
desde antes! - mostrando mais o que
pareciam fazer do que aquilo que realmente faziam. Sempre muito muito
atarefados, e sempre sempre com os livros certos debaixo do braço. A isto,
chamava-lhe ele o “manual do bom funcionário”. E era o início, para muitos,
duma fulgurante carreira que, não raras vezes, passava por uma associação
qualquer (se de estudantes, melhor), para depois se dar o salto para uma
filiação partidária e uma “jota”. Criavam-se, assim, na minha geração
universitária, os futuros – hoje presentes – políticos.
E assim, ante os nossos inexperientes olhos de jovens
universitários, da forma aparentemente mais natural possível, se desenhava a
aplicação do princípio de Peter. É simples: qualquer funcionário tende a ser
promovido até ao seu nível de incompetência. Quer dizer, muitas vezes as
pessoas, competentes em determinadas matérias, que desenvolvem com mérito, são
depois, fruto desse mesmo desempenho, promovidas ou nomeadas para desempenhar
funções em matérias para as quais são completamente incompetentes. Poderíamos
citar muitos exemplos (os clássicos são Macbeth, general competente, mas um rei
incapaz; Sócrates um excepcional filósofo, mas um péssimo advogado de defesa,
etc), mas escuso-me de o fazer: basta pensarmos no nosso sistema político.
Sobejarão os exemplos, e não é deles que me quero ocupar.
Este princípio parece-se aliar-se com uma grande facilidade à
arte de parecer fazer bem. Dito doutra forma, assumindo como verdadeiro o
princípio de Peter - é discutível, como se percebe – pode facilmente ter-se
sucesso, apresentando uma aparente dedicação mesmo quando se é incompetente.
Basta, assim, parecer sempre muito atarefado, dizer sempre as coisas que se
espera que se digam, comportar-se com uma certa subserviência para com as
chefias, acatando sempre e elogiando ainda mais, enfim, passeando os livros
certos debaixo do braço. O resultado deste afã, será nulo. Perfeitamente nulo,
mas perfeitamente útil para o “bom funcionário”. Naturalmente, acresce uma
imperiosa necessidade de assumir como verdadeiro inimigo aquele que é
meritoriamente competente: é que a competência tem, entre outras, a
extraordinária virtude de expor a incompetência. Já se vê o perigo: alguém
verdadeiramente competente no seu trabalho acaba inevitavelmente por expor a
incompetência ou a ineficácia alheia. Será, portanto, um alvo a abater por todo
e qualquer “bom funcionário”, que vive daquilo que aparenta conseguir fazer,
sempre muito atarefado sem, contudo, produzir nada.
Alia-se igualmente ao fútil, razão pela qual vemos tantos “bons
funcionários”. É que o fútil (o contrário de útil) valoriza justamente o
superficial, o parecer ser/fazer, tão determinante na ascensão dos “bons
funcionários”. E se há coisa que pode caracterizar o nosso tempo, é o fútil.
Mais que o vazio. Estamos para além do vazio.
Não me vou entreter a fazer uma hermenêutica da “Era do
Vazio”. Não precisa. Já passámos o tempo do esvaziamento de conteúdos e
significados – fútil: literalmente, o que deixa escapar o que contém. É certo que
a revolução social da década de sessenta (e a seguir) transformou, não só por
completo mas também definitivamente, a sociedade em que vivemos. Esvaziaram-se
de sentido conceitos e ideais velhos, desadequados e desajustados, incapazes já
de dar resposta às questões do íntimo humano. De acompanhar um homem que queria
mais. Sobretudo de si mesmo. Que se voltava para novos valores, empurrados pelo
consumo e pelos movimentos pós-modernos, centrados no autoconhecimento, no
sentimento do Eu, no culto do corpo, na procura do erotismo… Enfim, todos esses
conceitos que modelaram muito do que hoje somos.
Aspirava-se por mudança, sendo que a sociedade instituída teimosamente
a não oferecia. Mas a mudança é inevitável. “Todo o mundo é composto de
mudança” e é ela a força motriz do mundo. Lamentavelmente, porém, no frémito de
esvaziar tudo aquilo que peava uma sociedade nova, ninguém se lembrou do
movimento subsequente: instituir novos valores, novos ideários, novas barreiras
sociais… Assim, retiraram-se do quotidiano determinadas formas de estar sem
serem oferecidas à sociedade outras. Inebriou-se a sociedade com uma ilusória
liberdade, que se traduz, acima de tudo, num culto do fútil. Moralmente
asséptica, ou simplesmente amoral, foi-se desenhando uma sociedade estranha e
onde impera o que se vê e a forma como se vê.
Valores humanistas foram paulatinamente sendo propostos;
projectos de mais e maior solidariedade foram nascendo; novas formas de
organização das nações foram tomando forma… A Era do Vazio encheu-se de boas
intenções, governada por pessoas perfeitamente incompetentes e centradas no
fútil aparente.
Não parece que caminhamos para um abismo, sem retorno?
Pois parece. A sociedade em que vivemos, a nossa sociedade
(que todos e cada um fazemos e, portanto, todos co-responsáveis, em maior ou
menor medida), é completamente incapaz de olhar para fora de si mesma. Ou seja,
incapaz completamente de parar. De reflectir antes de agir. Em nome de um
insustentável progresso, que tem de ser sempre contínuo (reparem que o contrário
de progresso é regresso - e ninguém quer andar para trás!), sempre em
crescendo, sempre para mais, a sociedade não reflecte nas consequências. E
embarcou num percurso autofágico, engolindo tudo e todos, destruindo tudo à sua
volta. Inclusivé o planeta, sendo que não temos outro... Há, portanto, uma
irremediável incapacidade para reflectir e parar.
Li, há já algum tempo, um admirável artigo que,
lamentavelmente, perdi (mais uma consequência de termos tudo online) sobre a
proposta de adoptar um novo paradigma económico: em vez de progresso,
retrocesso. Quer dizer, desacelerar, para níveis comportáveis. Naturalmente,
não é uma proposta com sucesso.
Extraordinariamente, porém, é justamente nesse patamar que
estamos hoje. Algo de profético, poderia dizer-se. Uma mente racional dirá
somente que era inevitável que, mais tarde ou mais cedo, fosse necessário
parar. Mesmo que isso não tinha sido voluntário, nem por causa das preocupações
com o planeta nem, tão-pouco, porque finalmente se compreendeu a necessidade de
um paradigma económico, novo, que seja sustentável. Foi, de forma brutal, pela
circunstância do medo.
Se há coisa que caracteriza o nosso tempo é o fútil. Uma
sociedade baseada no fútil é sempre frágil. E, portanto, quando entra em crise,
o medo ganha. Como não será, então, quando nos vemos a braços com uma pandemia
que ameaça o nosso estilo de vida e vai obrigar, forçosamente, à redefinição de
tudo aquilo que julgamos saber e estávamos habituados a fazer?
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