quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O penso rápido

Quando eu era miúdo e fazia uma ferida, a coisa de que tinha mais medo era dos pensos rápidos. Não pelo penso. Mas porque ao tirar arrepelava os pêlos (lamento, escrevo à antiga... fora de moda, bem sei. Mas até eu me parece que já passei de moda) ou então por estar agarrado à ferida ainda não sarada, fazia doer. Pedia à mãe que arrancasse o penso muito devagarinho e que soprasse. E ela lá se punha, com infinita paciência, a soprar-me o joelho ou o braço, enquanto puxava o penso pêlo a pêlo, como se o sopro levasse a dor, por entre um ou outro grito de protesto meu, mas não sem dizer que se arrancasse depressa, todo de uma vez, iria fazer doer menos.
À medida que fui crescendo, a vida foi-se encarregando de me arrancar os pensos de forma rápida. Não me pareceu que doesse menos. Também não sei dizer se doeu mais. A dor é sempre dor. A diferença é que me dói tudo de uma vez, em vez de ser pêlo a pêlo. Mas a contrapartida é que me afunda sem apelo nem agravo, e só a custo volto à tona. Mas também não é mais fácil quando me arranca os pensos devagar. Primeiro porque não sopra na ferida, depois porque devagar, devagarinho me faz repetir a dor uma e outra vez, até não haver mais pêlos. Porque os pensos da vida não são como os rápidos, só aquela tirinha plástica... São enormes, compridos. Às vezes cobrem-nos de alto a baixo.
Com os meus Avós, está a arrancar-me o penso pêlo a pêlo. E dói de cada vez.
Devo estar realmente uma pessoas muito adulta, porque tenho a cabeça cheia de porquês... E uma pessoa pode afundar-se nos porquês. Também me apetece hoje perguntar outra vez “onde está o Deus”. Mas não sei se quero mesmo perguntar ou se é a tristeza que pergunta por mim. Olho para a vida como um sudecer de coisas e contecimentos, inexorável, sem piscar os olhos nem olhar para trás, indiferente aos apelos. Será o tempo que passa ou será a vida que passa no tempo? E os dois, num conluio, vão tirando, todos os dias algo.
A ideia da finitude nunca me meteu medo. A minha finitude olho-a como uma coisa normal da vida. Curiosamente, só me vem o porquê quando penso na finitude das pessoas de quem gosto. O terror de não poder voltar a tocar, a ouvir, a sentir o cheiro... Uma pessoa pode afundar-se nos porquês.
Hoje pus-me a olhar para a casa vazia dos meus avós, nesta fase mais debilitada da sua velhice. Há um sentimento estranho ali, de estarem e ao mesmo tempo não estarem. Vejo-os todos os dias. Estou com eles todos os dias. E, no entanto, hoje, pela primeira vez na minha vida queria não estar sozinho. E a única companhia que me serviria eram eles. Os três, na casa velha e branca, pequenina e quieta. Consigo ver-me ali, à hora de jantar, depois de comer, a brincar no corredor, junto à camilha, com o velho carro da polícia feito de lata, enquantos eles olham para mim e se riem. A minha Avó diz, como de todas as vezes, que não comi quase nada. O meu Avô responde que já como mais, vou comer a fruta com ele. Doeu-me muito. Não sei quantos pêlos a vida me arrepelou hoje.
Mas já descobri que, não importa quantos pensos a vida me ponha, vai doer sempre.

1 comentário:

  1. E tu arrepelaste-me os pêlos com este texto...como eu te entendo!!
    Easpero que estejas bem...Jinhos grds

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