quarta-feira, 11 de maio de 2016

Chuva, rostos e exoplanetas

Saí para a rua apesar da chuva. Apetecia-me ver gente. Gente. Apressados, para cima e para baixo. Uma nuvem de guarda-chuvas, impermeáveis, corta-ventos. Tudo em passo ligeiro. Também me apressei, porque não tinha guarda-chuva. Entrei no metro. Na minha carruagem estavam quatro raparigas e um rapaz, com três gerberas na mão, galhofando. Não sei porque razão levavam as flores. Um grupo de alunos em praxes entrou de penico azul na cabeça, saudando “A Matemática deseja-lhe boa viagem”, e em cada paragem “A Matemática deseja-lhe um resto de bom dia”. À frente, uma senhora ria-se. Quando saí, o grupo das flores ainda ficou na galhofa... “Deseja-lhe um resto de bom dia”...
Na rua, apenas os locais parecem incomodados com o aguaceiro. Por todo o lado turistas passam descontraidamente, mapas nas mãos, máquinas fotográficas e olhares boquiabertos para aqui ou para acolá. Um sorriso, um dedo a apontar, também eles de impermeáveis de cores berrantes e chapéus na cabeça ou guarda-chuvas, prosseguindo o seu périplo. Sorri para mim mesmo: é assim que parecemos aos olhos dos outros?
A mim apetecia-me a luz da cidade, a bater nas gentes, nas ruas, nos turistas e nos guarda-chuvas... Finalmente, lá acabaram por vir uns raios de sol, num breve período sem água. Iluminou-se a rua e senti-me bem, apesar de andar na cidade. O ar acabado de lavar pela chuva encheu-me os pulmões.
Subitamente, no infindável conjunto de rostos em permanente movimento pelas ruas, caras conhecidas do facebook ou doutras aplicações. Qual a possibilidade disto, pensei. Cumprimentei com um sorriso, ante uma cara estupefacta. Não me reconheceram. Não admira. Não nos conhecemos, nem sei nada deles, a não ser toda a sua vida exposta nas redes sociais, acompanhando as suas partilhas. Sinto-me desta maneira ou daquela; estou aqui ou acolá; a fazer isto ou aquilo... E eu vou acompanhando aquilo, fazendo scroll-down, scroll-down, scroll-down, numa leitura de fotonovela moderna, acabando por conhecer a vida das pessoas, sem as conhecer. Sei delas nada, a não ser tudo. Que coisa esquisita. Mas percebi que este reconhecimento não é mútuo, perante o espanto do meu cumprimento ou acenar de cabeça, e remeti-me novamente ao silêncio contemplativo da luz nas ruas e nos chapéus-de-chuva. Para essas caras eu sou um perfeito desconhecido. A solidão da minha vida estende-se também às redes sociais.
Depois disto fui ver a minha rede de “amigos”. Nada mal, para um solitário, pensei. Quando publico qualquer coisa há sempre uns likes, poucos é verdade, o que atribuo ao facto dos meus interesses serem peculiares e certamente muito diferentes dos da maioria das pessoas. Ainda assim, lá vão aparecendo alguns, seja quando desabafo qualquer coisa ou quando publico um texto qualquer no blog, sendo que desses poucos me pergunto quantos, realmente, lerão o que escrevo e se esses likes não serão apenas automatizações de simpatia vazia. Mas se não ligam nenhuma às coisas que gosto e digo, para que raio me seguem, pergunto-me eu?
Refugiei-me numa livraria, pequeno santuário, até porque, entretanto, começou novamente a pingar e me aborreci com as caras que só eu reconheço. Qual é a possibilidade disto acontecer, hã?, voltei a perguntar-me, enquanto o olhar deambulava pelas capas nos escaparates. Fugi rapidamente para uma secção onde pudesse haver algo que me interessasse. Acariciei dois ou três volumes, li umas sinopses e voltei assim reconfortado para à rua. Comprar nem pensar, porque não tenho dinheiro. Tenho de me contentar só a ver. À saída, mais uma cara conhecida – mas que é isto? - a quem nem pó, nada de cumprimentos, e o olhar esbarrou-me num dos best-sellers actuais. Serviu para me irritar. Como é possível alguém que nem escreve assim tão bem vender tantos livros e eu nada! Oh, como eu queria poder viver da escrita. Quase me apetece chamar por Deus, como se ele me resolvesse alguma coisa. Não é um talento. Não tenho talento nenhum. Tenho é paciência para escrever, para deixar que as palavras que volteiam na minha mente levem tempo a quererem ser escritas. Mas viver disso?... Como?
Anda lá, publica o livro. Tens tanto jeito... - a pior coisa se pode dizer a um escritor é que tem jeito. Muito incentivo. Vai correr bem. E eu lá fui. Mendigar para arranjar o dinheiro necessário. Decidi-me por um ebook. Bravo, bravo! Parabéns. Que bom, que bom! Tão contente por ti que estamos. Like, like, like. Mas intimamente, uma tristeza, contrastante com o sol a iluminar as ruas: um exemplar vendido. Um. Apenas um. Uma carta simpática do editor, a dizer que, lamentavelmente, não há lugar a pagar-me nada e, abaixo, uma tabela de excel com resumo de vendas: uma linha. Um exemplar vendido. Bravo, bravo! Parabéns ao fiel leitor que tem um exemplar único. Fosse ele de papel, e eu assinaria a dedicatória: para o meu mais fiel e único leitor. E aquele fulano, abre a boca e vende 10 edições com livros de caca. Inveja, pois. E pena. Leiam, leiam enormidades criaturas ocas. Leiam. À conta de tanto ler, pode ser que aprendam. Há esperança. Muito obrigado a tanto incentivo.
 Sabes, gostava tanto de ler o teu livro... E eu lá vou dizendo: deixa estar que te mando um exemplar. Assim como assim, ninguém o compra. Automatizações de simpatia... “Deseja-lhe um resto de bom dia”... Não sei que mais posso fazer para poder viver da escrita. Nas ruas tanta gente... Reparei então que a infelicidade nos rostos condizia com a minha, por entre impermeáveis e raios de sol, havia quem risse, bem disposto, a falar ao telemóvel. Outros, sem olhar para onde iam, escreviam mensagens ou iam “chateando”. Outros, olhos nos chão ou olhos cravados em coisa nenhuma, distantes. Aqui e ali, uns sapatos pouco cuidados ou roupa gasta contrastava com os bem vestidos da roupa da moda, tudo muito estilizado, calças slim ou skinny ou outras que não consigo padronizar, botas ou sapatos a condizer, impermeável ou corta-vento de bom gosto e penteados actualíssimos. Tudo muito urban chiq. Senti-me deslocado. E cansado.
Enfiei-me no autocarro. Entrou também uma cigana com uma filha. Acabou-se o sossego, pensei. E não me enganei. Pegou no telemóvel e fez chamadas atrás de chamadas, pedindo a uns, cobrando a outros, voltando a chamar os primeiros, prometendo a outros ainda, com a filha a anuir e a dar opinião naquilo tudo. Em cada conversa, uma mentira e uma versão ligeiramente diferente da anterior. Um jogo de espelhos e enganos. Naqueles telefonemas, passou de mão em mão mais dinheiro do que eu ganhei no último ano a trabalhar. Tudo através das mãos dela. Pensei que deviam dar um cargo de gestão qualquer àquela mulher. Ou chamá-la para negociar com os nossos “parceiros”... Não deve haver expressão mais hipócrita do que chamar “parceiros” a credores e profissionais da dívida dos países. Outro telefonema e fiquei a saber que trazia umas coisas para vender. A filha também, que entretanto pegou no telefone e foi desfiando a quantidade de sapatos de fulana; as blusas de beltrana, o telemóvel de citrano... Mas ela nada. Tinha medo. Só umas coisitas para ela. Desta vez, nem os ténis, porque não havia o número dela, ante o olhar embevecido e algo orgulhoso da mãe, que lhe dizia que até sábado haveria de haver o número que ela queria. Há qualquer coisa de extraordinário no confinamento forçado de um autocarro, em que as pessoas tratam dos seus assuntos privados como se mais ninguém estivesse a ouvir. Fiquei com a certeza que a problemática associada aos ciganos não se vai resolver. Nem a xenofobia. Pode atenuar-se. Resolver-se não. E nem sequer lhes convém: vivendo num sistema social no qual não se integram mas do qual beneficiam e reivindicam direitos, sem nenhum compromisso pelos deveres e obrigações associados. Para eles, “os brancos” são um imenso mar de oportunidades de negócio. Uma sociedade paralela na qual se movem com mestria. A razão pela qual nada disto desaparecerá é porque até esta simples opinião minha contém, ela própria, algo de xenófobo.
A conversa entristeceu-me ainda mais, ao mesmo tempo que me mostrou duas coisas: o patético da minha vida e o cansaço de uma vida de nadas.
 Tenho saudades de Lisboa. Tantas saudades. E de uma vida. Tenho saudades de uma vida.
Cheguei cansado. As ruas escuras vazias, só de casas e luz de candeeiros, despidas de qualquer agitação. Enchi os pulmões do ar quase bento de tão lavado. O coaxar das rãs encheu-me os ouvidos, apagando por completo a balbúrdia das gentes, dos impermeáveis e dos guarda-chuvas.
 “A Matemática deseja-lhe um resto de bom dia”.
Se houver um like, apenas um, seja de alguém que realmente leu. Leu e percebeu a solidão de um escritor. Não sei se quero likes de automatizações simpáticas. Nem sequer sei se quero continuar a encontrar caras conhecidas de redes sociais ou outras aplicações. A ironia é que vou continuar a tê-las, porque ninguém lê patavina do escrevo. Seria a minha sina, se acreditasse nela ou fosse fadista.
Entretanto, a NASA anunciou que se encontraram mais de 1200 exoplanetas e que alguns poderão ter vida. O maior achado da história, li ontem em qualquer notícia. Talvez seja. Pela minha parte, vou continuar a escrever e descrever as idiossincrasias que tecem este mundo. É o único que conheço. Ainda que hoje esteja algo desiludido com ele. Não com o mundo, como é óbvio. Com o meu mundo. A infinidade de mundos dentro do mundo também deveria espantar os cientistas da NASA. Fico a desejar que não percam a capacidade de se admirar com o que está à frente dos olhos. Quando se olha muito para longe, pode perder-se a capacidade de ver o que está perto.
Entretanto, lá fora continua a chover. Talvez seja bom para as gerberas. De sede, não hão-de morrer.
Tantas saudades de Lisboa. E de uma vida.

2 comentários:

  1. Gostei verdadeiramente do que li e,de certa forma,identifico me em tanto. Não foi por acaso que aqui vim parar...é que também eu achei que "pelintra" era um bom título, e que um blog era um bom exercício de escrita. Mais do que escrever para outros, escrevemos para nós próprios, para uma sanidade dentro da insanidade; às vezes a cru, outras revestido de qualquer coisa que nos parece certo na altura, o uso das palavras é realmente algo que vale sempre a pena. Continua. Like,like,signifique isso o que signifique. Mas gostei.

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