segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Bizarrias de Halloween

    Dentre as tarefas domésticas que mais me aborrecem conta-se fazer a cama. Desde logo pela sua inutilidade, visto que é necessário fazê-la para a desfazer, todos os dias. Naturalmente, nada se compara a uma caminha bem feita, com os lençóis muitos esticadinhos. Mas que é aborrecido, lá isso é. Faz-me pensar na inutilidade de tantas coisas que nos habituámos a fazer diariamente. Na forma como nos fomos tornando reféns de coisas que não fazem absolutamente falta nenhuma. É verdade que não é o caso do fazer da cama. Serve um propósito, uma utilidade. Mas muitas outras coisas não. Veja-se, por exemplo, certos fenómenos de popularidade... Só há dias ouvi falar duma criatura chamada Maria Leal. Quem me conhece sabe que estou sempre alheado dos fenómenos televisivos, uma vez que o que me interessa ver na TV raramente atinge picos de popularidade. Assim, fenómenos como a dita senhora, passam-me quase sempre ao lado, como este passaria, não fosse alguém comentar qualquer coisa do género “ainda é pior que a Maria Leal”... Lá me inteirei de quem é e do que faz. Ninguém me soube explicar ao certo donde apareceu. Mas a internet ajudou. Rapidamente me apercebi que o meio donde apareceu dificilmente seria mais esclarecedor. Fiquei a saber que teria sido namorada dum fulano que esteve num reality-show da TVI, que entretanto já estava com outra ou queria estar... Qualquer coisa do género. O primeiro pensamento que me ocorreu, enquanto me inteirava da história e conhecia os protagonistas da história, foi considerar o fraco gosto do fulano... Entre uma e outra, enfim. Mas bom, gostos não se discutem. Fiquei esclarecido. Não admira que não fizesse a mais pálida ideia de quem era a bizarra celebridade. Vi uns vídeos no Youtube e as palhaçadas habituas num programa mais ou menos histérico do Goucha e sua partener e chegou-me para perceber. Aliás, a referida estação de televisão tem sido profícua em brindar-nos com uma panóplia de celebridades instantâneas verdadeiramente de arrepiar. O que se adequa, visto termos chegado ao Halloween. Ainda um dia gostava de ler um estudo antropológico (sério) sobre o impacto destes programas na sociedade e na forma como, ao que parece, muito são do agrado de tanta gente. Só isso, a mim, já me admira, quanto mais os programas e os participantes em si.
    O Halloween é aquela festividade anual que não existia quando eu era criança. Ou melhor, existia, evidentemente. Eu é que não fazia disso ideia. Nem eu nem a maior parte das pessoas da pacata terra onde cresci. Aí, celebravam-se os Santos. Nunca cá se falou de abóboras iluminadas e desfiles de máscaras fora de época. Ia-se de casa em casa, com uma bolsa, pedir os santinhos, ou o bolinho... E era isto. As mães e avós iam ao cemitério tratar das sepulturas dos mortos, carregá-las de flores e ia-se misturando Santos e Fiéis defuntos como se fossem uma só coisa. Halloween é que nem vê-lo. Uma vez mais, a TV e, talvez melhor, a internet trouxeram-nos esta moda anglófona. O marketing comercial fez o resto. De tal modo que hoje o que se celebra é o Halloween. Por mim, tudo bem, até porque, na origem é também uma festa relativa aos mortos... Parece que vem do tempo dos druidas, com rituais bizarros e sacrifícios de crianças, muito distante das gostosuras ou travessuras de hoje. Mas não se sabe ao certo, como tudo aquilo que é longínquo no tempo e as tradições e poderes posteriores instituídos se esforçam por apagar. Os romanos terão posto fim aos sacrifícios, o cristianismo sacralizou os rituais e as origens perderam-se. Ganharam as crianças, que têm assim dois carnavais, muitas abóboras iluminadas e montes de doces para se deliciarem. O Halloween celebra hoje o bizarro, e explora os mitos e crenças de outrora, exacerbando-os e dando-lhe roupagens mais pitorescas. Não me espantaria ver numa festa qualquer da TV alusiva ao Halloween a participação da Maria Leal, celebrando a sua própria bizarria. Obviamente, apesar de tudo o que se diz dela e do gozo incendiado nas redes sociais, o certo é que os vídeos têm milhões de visualizações e os seus patrocinadores (há-de havê-los, que a criatura não caiu do espaço) vão tirando dividendos disso. Consigo ver nisto uma certa estratégia, um bocado “trumpesca”: vão dizendo mal de mim, desde que digam... E resulta, ao que parece. Quem me poderia convencer que o senhor Trump poderia alguma vez ser Presidente dos EUA? E, no entanto, ele aí está... Claro, ainda não foram as eleições, não ganhou nada ainda... Provavelmente (espero!) não ganhará. Mas o susto... Esse já ninguém nos tira. Ouço e leio comentários sobre o “como foi possível” que alguém como o dito senhor chegasse até aqui, quase tudo a arrepelar os cabelos, mas pronto, ele lá vai prosseguindo na sua bizarria incendiária e populista, colhendo dividendos duma sociedade cansada, esgotada e vazia. É o vazio, e a subsequente indiferença, que permite que cada vez mais as sociedades vão entrando em falência nos seus modelos... Que cresçam fenómenos como a Maria Leal ou o senhor Trump. Uma porque diverte, o outro porque atiça. E, na surdina, há uns poucos que, sabendo disto, vão levando a água ao seu moinho, depauperando carteiras e consciências, retirando direitos e restringindo liberdades. Tudo em nome de uma certa estabilidade e do manter de um modelo sócio-económico-político sem respostas e perverso.
    Consola-me saber que a Maria Leal anda aí só para nós, que o senhor Trump continuará a apalpar as meninas e a dizer barbaridades ocas e perigosas e que as crianças continuarão felizes a pedir doces à luz de abóboras iluminadas em vez de serem queimadas em fogueiras. Valha-nos isso, ao menos. Tudo me parece inútil. Tal como fazer a cama. Mas, pelo menos, fazendo a cama, sei que terei os lençóis direitinhos... Quem boa cama faz... Happy Halloween! E feliz Dia de Santos.

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